1 de fevereiro de 2009


Não sei bem o que é esta coisa do amor nem faço caso. Sei que é disléxico e, se não se importam, vou indo. O amor é disléxico sim, porque nos obriga a dizer o que não queremos dizer e a fazer o que não queremos fazer. Eu, por exemplo, não queria escrever isto e olhem só o que para aqui faço. O amor baralha tudo, ouçam o que vos digo. E muda tudo, como se tivéssemos um filho. As pessoas que têm um filho dizem-me sempre " Um filho muda tudo". E eu invariavelmente respondo-lhes "O amor também".

O amor mudou-me muito e fez de mim mais homenzinho do que a tropa. Foi o amor que me fez homem, não as 100 flexões seguidas. Foi o amor que me ensinou o meu nome e não o sargento a debitá-lo alto. Foi o amor que me acordou cedo para o dia e não os passos firmes que diziam que eu só tinha cinco minutos. Eu quero ter mais de cinco minutos para me levantar e pôr-me lá fora, que está frio. E o amor tem-nos, embora o frio permaneça. E eu nunca tenha ido à tropa.

O amor é disléxico porque nos faz esquecer qualquer construção perifrástica. Sobram-nos algumas vogais para entreter, mas é sempre muito pouco. Quando amamos muito regredimos imenso e damos por nós com tão poucas palavras, que por vezes parece que estamos a jogar ao Pictionary, com a pessoa a adivinhar o que quererá dizer cada um dos nossos gestos. É um animal esse desenho aí? Gostas de mim, é isso? E nós, com cara de quem acaba de aceitar comer um belíssimo prato de Nestum Mel, lá vamos dizendo que sim com a cabeça enquanto soluçamos.

Não há muitas palavras para o amor e por isso, mesmo entre aqueles que se dedicam à escrita, percebe-se muito bem quem são os que sentem mais isto. São os que escrevem menos. As pessoas que amam muito escrevem pouquíssimo e quando escrevem, normalmente, optam por um poema porque é mais pequenito e tem menos palavras. Os poetas amam mais por isto. Olha-se para um poeta e vê-se que o indivíduo sofre para escrever aquilo. Um poeta ama sempre, caramba, um escritor só às vezes. Convenhamos, olha-se para um escritor e não é a mesma coisa. A esta altura já alguns estarão a dizer que um poeta e um escritor vão dar ao mesmo e a esses lhes digo: Nao me lixem! Eu, que nunca fiz um poema da mesma forma que nunca fui à tropa, nem nunca ouvi o meu nome vociferado pelo sargento, nem nunca me levantei em apenas cinco minutos, que era assim que o meu pai me contava que se fazia.. Eu, que não sei nada disso, sei no entanto que não se pode ligar para um poeta e dizer-lhe: "Ó Herberto, faz-me aí um poema porreiro para o jornal de amanhã!" como muitas vezes acontece com a malta de caracteres onde eu me incluo. Eu acabo de perfazer os meus e de assim vos servir, no total, 2668. Bom apetite.

por Fernando Alvim em O amor quer-se disléxico, que eu bem sei.
às quartas feiras no jornal O Metro.

2 comentários:

Unknown disse...

Estou... speechless! Lindo! De facto o amor é uma COISA esquisita, de outro universo, transcendente. Quando nos toca... ficamos assim... maluquinhos. BONS maluquinhos :)))
Beijinhoooo

Patrícia disse...

c'est la vie ;D