Quando o meu olhar se cruza com o dela, sinto-lhe a tristeza, o cansaço, a dor. Sei que perdeu a esperança - que secalhar nunca a teve - e a vontade de viver. Oiço-lhe os pedidos a um Deus que eu deixei de acreditar à muito. Reza para que a leve e nos dê descanso a todos.
Desvio o olhar, centro-me na minha mãe, ela não transparece o desespero, o medo, o abatimento. Segura as lágrimas dia-a-dia, ri-se de todas as coisas, finge chatear-se com a mãe obrigando-a a comer e procura falar sempre calmamente. Pequenos refúgios que ela construiu, que ela segura sempre que o vento sopra mais forte, sempre que qualquer coisa no mundo a vira do avesso. Mas os refúgios não são feitos de aço e, frequentemente, desmoronam-se deixando cair por terra a mascara que utilizamos para não nos mostrarmos ao mundo. E, nessas alturas, vejo o medo, a fraqueza, o esgotamento e os nervos estampados na cara dela.
Eles desentendem-se algumas vezes mas ele nunca sai do leito dela. Morre a cada dia que passa ao vê-la ali deitada. Acredito que não aguentará muito mais depois dela partir. Duas almas que viveram praticamente uma vida, lado a lado. Sinto que partirão juntas.
A Carla esforça-se tanto. Quer por esta avó como pela outra. Vive para a família, entregando-lhe todo o amor que tem. É uma espécie de anjo da guarda que olha por todos nós. Um ser de metro e meio com uma garra e força surpreendentes.
O meu pai pouco enfrenta esta realidade, a sobrecarga de trabalho impede-o de conviver mais em casa. Apenas apela à razão da minha mãe quando ela se deixa abater e descarrega no mundo.
Elas ligam muitas vezes preocupadas com a avó. Tantos outros procuram notícias dela todos os dias e ligam incansavelmente à sua procura.
Todos vivemos este período do modo que conseguimos e podemos. Uns mais deícticos, outros mais resguardados ou mais seguros, uns mais certos, outros escondidos da realidade e entusiastas da derradeira esperança.
Eu sei o princípio, o meio e o fim da história. Dispo a personagem até ao momento final, saiu de cena e não decoro as falas. Não actuo.
Sou fria, sou mentirosa, sou rude com esta realidade que me foi imposta. Vivo alienada. No entanto, sempre atormentada pelo sofrimento que a tua caminhada lhes irá causar.
Quando já nada é intacto
quando tudo na vida vem em pedaços
e por dentro me rebenta um mar
quando a cidade alucina
num luar de néon e de neblina
e me esqueço de sonhar
Quando há qualquer coisa que nos sufoca
e os dias são iguais a outros dias
e por dentro o tempo é tão voraz
(...)
Quando a cidade te esconde
e o silêncio é o fundo das palavras
Que te esqueces de gritar
Quando por Mafalda Veiga